Por muito tempo as bicicletas elétricas eram vistas como itens exóticos nas ruas, usadas por meia dúzia de ciclistas excêntricos. Hoje, são elementos comuns nas paisagens urbanas do país, com os mais variados tipos de usuários que não abrem mão dos modelos para superar ladeiras ou ruas difíceis e ter maior conforto.
Entretanto, muitos que pedalam para o trabalho consideram-nas dispensáveis – seja por as julgarem necessárias apenas para quem tem restrições de mobilidade ou, de forma pejorativa, para quem tem “preguiça de pedalar”. Se essa é a opinião de boa parte dos ciclistas urbanos, imagine a aversão que vigorava entre atletas e esportistas. Para quem sobe em uma bike em busca de rendimento, usar um modelo elétrico para melhorar os resultados físicos era um verdadeiro disparate.
Sim, era. O verbo está no passado exatamente porque esse cenário tem mudado, com o avanço no mercado de uma nova geração de bicicletas elétricas, integradas a plataformas digitais e que por meio de algoritmos e outros recursos vêm aprimorando os recursos de forma a auxiliar e não substituir a experiência do pedalar.
O exemplo da professora de educação física e atleta Adriana Nascimento, 43 anos, ilustra tais quebras de paradigma. Por muito tempo, ela engrossava o coro dos ciclistas anti-bikes elétricas. “Costumava dizer que seria meu tipo de bike a partir dos 80 anos”, brinca. Sua influência era grande. Com uma vivência em competições que começou aos 15 anos, ela acumula importantes conquistas na modalidade mountain bike, como campeã panamericana, e dez vezes vencedora da modalidade brasileira.
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A atleta Adriana Nascimento com uma bike elétrica integrada a uma plataforma digital. Foto: Rômulo Cruz/Specialized |
Sem ser intransigente, durante os anos ela chegou a experimentar modelos elétricos, porém as experiências não foram suficientes para mudar sua convicção de que tais bikes e o aprimoramento das atividades físicas eram uma combinação tão integrada como a mistura de água e óleo.
Entretanto, há três meses seus colegas de treino já se habituaram a vê-la girar no modelo elétrico Turbo Levo S Works da Specialized, em pedais que duram de 3 a 5 horas e chegam a percorrer 100 quilômetros. A chave para a mudança de ideia? A possibilidade que a bike escolhida oferece de monitorar o funcionamento de seus componentes principais por meio de um software. Dessa forma, com o celular Adriana consegue definir parâmetros que maximizam o desempenho de seus treinos.
“O recurso que considero mais interessante é o Smart Control, que ajusta a potência do motor e da bateria com base na distância que pretendo percorrer, ou por quanto tempo vou pedalar. Ajuda muito no gerenciamento da autonomia.” Quanto ao antigo receio de estar burlando o preparo físico com uma bike elétrica, Adriana não tem mais dúvidas. “Hoje minha e-bike entra como um excelente complemento para os treinos físicos e técnicos. Mantenho a forma porque pedalo por mais tempo, inclusive nos dias que seriam de descanso com a bike normal.”
Com o investimento em modelos inteligentes, integrados a tecnologias como inteligência artificial e machine learning, os fabricantes de bicicleta veem aumentar a adesão de ciclistas esportivos, o que pode inspirar a adesão de outros tipos de ciclistas, como aqueles que usam para ir ao trabalho ou para cicloturismo. “Alguns de meus amigos de treino já compraram bikes como a minha, principalmente quem gosta muito de pedalar em trilha e tem pouco tempo. E vejo que muitos outros realmente gostariam de comprar uma”, completa Adriana.
O mercado de bikes inteligentes
Apostando na união entre bike e tecnologia, desde 2015 a Specialized integra suas bicicletas elétricas com a plataforma Mission Control. Com ela, é possível obter no celular um diagnóstico da bicicleta, registrar e avaliar as viagens e programar o modo com o qual a bateria é consumida. Dessa forma, o ciclista pode informar o trajeto pretendido e automaticamente a bicicleta é ajustada para que ele não fique sem energia no meio do caminho.
“Dentre vários recursos, utilizamos um algoritmo baseado em muitos dados de percurso denominado Smart Control. Significa que você não precisa se preocupar com a configuração do modo de assistência ou a capacidade da bateria durante seu pedal”, explica Marcelo Catalan, líder Turbo Business da Specialized América Latina. “O sistema constantemente monitora vários parâmetros, como energia consumida, tempo, distância, elevação concluída e a restante. A assistência do motor é ajustada com base nesse cálculo. Você pedala e o smart control faz o resto.”
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Marcelo Catalan, líder Turbo Business da Specialized América Latina. Foto: Rômulo Cruz/Specialized |
Atualmente a Specialized oferece 18 modelos de bicicletas elétricas integradas à plataforma digital. Nesta semana o portfólio aumentou com o lançamento de modelos topo de linha, a família de mountain bikes Turbo Levo SL, composto por 5 bikes cujo menor valor é R$ 56.999,00.
“Somos super otimistas com o mercado das e-bikes no Brasil, tanto que oferecemos a maior gama de bicicletas assistidas por motor elétrico no País, com modelos para o ciclista desfrutar de todos os tipos de experiências: Urbano, Fitness, Estrada, Gravel e Montanha”, comenta Marcelo.
Tal otimismo se refletiu no modo como as novas bikes foram lançadas: de forma simultânea ao mercado internacional. Uma decisão inédita da empresa, que sempre iniciava as vendas de suas novas bicicletas por aqui após meses de comercialização no mercado global.
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Lançamento do modelo Turbo Levo SL da Specialized. Foto: Rômulo Cruz/Specialized |
A alta tecnologia também é aplicada a acessórios. A Specialized passou a investir em itens hi-tech como capacetes dotados de sensores. Os chips são projetados para aumentar a segurança do ciclista, medindo as forças transmitidas ao capacete de forma que em caso de uma queda ou colisão um alerta é emitido, via celular, para contatos de emergência.
Inteligência artificial para o ciclista urbano
O investimento em bikes inteligentes não vem somente de gigantes do mercado como a Specialized. Com foco no ciclista urbano, a startup brasileira Vela, que desde 2012 desenvolve bicicletas elétricas, prepara-se para lançar em 2020 uma nova geração de modelos que irá abolir todos os controles analógicos, denominadas “Smart bikes”.
“São uma nova categoria de bicicletas elétricas. A conectividade, o controle e o monitoramento remoto, e a possibilidade de atualizações por meio da internet elevam o potencial dessa categoria a outro patamar.” explica Victor Hugo Cruz, fundador da empresa.
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Victor Hugo Cruz, CEO e fundador da Vela. Divulgação. |
As novas bikes contarão com o uso da inteligência artificial para fazer análises do comportamento do ciclista. Com sensores, a bicicleta “aprende” o estilo de pedalar e as decisões do ciclista e, a partir disso, um aplicativo dará sugestões como indicação de vias em que a pavimentação é melhor, sem buracos, e onde estão os postos de recarga de bateria mais próximos. O sistema também pode definir automaticamente a potência ideal de acordo com situações específicas. Em uma subida a bicicleta “entende” que precisa dar uma força e, logo, a tração do motor é aumentada. Já em momentos em que é preciso maneirar, como em uma descida, o sistema pode segurar a velocidade.
Ações básicas como ligar e desligar, acionamento dos faróis, trava remota e alarme, assim como a definição dos níveis de potência do motor serão feitas pelo aplicativo. Com isso, o projeto permitiu a eliminação de botões e a redução em 50% do volume de fios.
Bike elétrica é saúde
Enquanto as bikes elétricas inteligentes ganham adeptos convencidos de que estão realizando uma boa atividade física, surgem evidências de que as elétricas comuns também cumprem esse papel. Foi o que veio à tona com uma pesquisa publicada em 2019 na revista científica Transportation Research, mantida pela editora Elsevier. O estudo, desenvolvido por pesquisadores ligados a mobilidade urbana de diversas partes do mundo, acompanhou 10 mil pessoas em 7 cidades da União Europeia entre 2014 e 2017 e comparou a atividade física de usuários de bikes elétricas, convencionais e de quem não pedalava.
A base de medição é o índice minutos MET por semana (Metabolic equivalent task, em português “Equivalente metabólico de tarefa’’), medida que faz uma combinação da intensidade e duração da atividade e, a partir disso, estima o custo energético de uma atividade física. Usuários de bikes elétricas apresentaram um nível de atividade física de 4.463 minutos MET por semana, enquanto quem pedalava modelos convencionais exibiram 4.085 minutos MET por semana.
Em miúdos: quem pedalava com bikes elétricas apresentou um nível de atividade física ligeiramente maior. “Uma percepção popular é que, como as bicicletas elétricas têm assistência, isso se traduz em menores níveis de minutos MET. Nosso artigo mostrou que esse não é necessariamente o caso. Isso não foi surpresa para nós, mas talvez para alguns”, afirma Thomas Götschi, um dos autores do artigo e integrante da Unidade de Atividade Física e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O especialista ressalta os diferentes tipos de rendimento que o uso de uma bike elétrica proporciona, que podem ser pouco ou muito significantes de acordo com o perfil. “Simplificando, eu diria que em ciclistas jovens, saudáveis e frequentes, a mudança para uma e-bike provavelmente não aumentará o nível de minutos MET. O grande potencial para o aumento está em ciclistas pouco frequentes, idosos e em menos aptos. Para esses grupos, as bicicletas elétricas podem resultar em enormes ganhos líquidos no índice”.
Os bons resultados das elétricas podem também ser percebidos em outros dados revelados na pesquisa: quem usa tais modelos circulam por distâncias mais longas e por mais tempo do que os ciclistas comuns. Assim, compensam o menor esforço por quilômetro proporcionado pelo motor. A distância média das viagens de ciclistas que usavam bikes elétricas foi de 9,4 quilômetros, quase o dobro do valor registrado com ciclistas convencionais, 4,8 quilômetros. Quanto ao tempo médio de duração das viagens, os registros foram de 35 minutos para os ciclistas com elétricas e 25,6 minutos para os convencionais.
Mercado em ascensão, mas amarrado
Quando o assunto são as vendas, as elétricas registram crescimento constante nos últimos anos, uma razão a mais para as empresas investirem nos modelos integrados ao mundo digital.
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pesquisa “Projeções e análise da demanda por bicicletas elétricas no Brasil”, realizada pela associação Aliança Bike feita em parceria com a consultoria de comércio internacional Sidera Consult, mostra a progressão do comércio em locais como Estados Unidos, União Europeia e Brasil. Na União Europeia, o registro de 400 mil bikes elétricas vendidas em 2010 é tímido comparado aos resultados de 2015, quando foram comercializadas 1,2 milhão de unidades nos países membros, o triplo. Nos EUA, as vendas saltaram de 300 mil para 700 mil unidades entre 2010 e 2015.
O crescimento é ainda mais significativo quando comparado às vendas de modelos convencionais – apesar de expressivas, estão praticamente estagnadas. Na União Europeia, os números se mantiveram na faixa de 20 milhões de unidades por ano. No mesmo período, a variação nos EUA foi de 15 milhões para cerca de 17 milhões de bikes.
No Brasil, com números bem mais modestos, as vendas de e-bikes também seguem direção ascendente. Em 2010, foram vendidas três mil unidades. Cinco anos depois, foram oito mil: 170% de aumento.
Para Henrique Zompero, vice-presidente da Aliança Bike, tal expansão está ligada ao caráter inclusivo dos modelos. “As bicicletas elétricas dão oportunidade a pessoas que, por vários fatores, não utilizam a bicicleta, mas podem adotar as elétricas e mudar o estilo de vida. Além disso, não são concorrentes das comuns. Elas expandem o raio de alcance, permitindo que mais pessoas passem a vivenciar uma nova maneira de se deslocar na cidade, experimentando os mesmos ganhos e benefícios das bicicletas convencionais.”
Porém, o otimismo do mercado se arrefece com o desafio de lidar com a alta carga tributária, composta por cinco impostos que respondem por 85% do valor final da bicicleta. “O mercado ainda novo gera muito otimismo e a possibilidade de crescer com ele nos estimula a manter nosso posicionamento como marca e empresa de mobilidade. Mas há uma preocupação muito ligada às políticas de tributação em cima desse modal, sem dúvida um dos produtos mais tributados no País, com impostos na mesma grandeza de itens mais supérfluos, como fogos de artifício e bebidas alcoólicas”, comenta Victor, da Vela.
O consumidor que sonha com uma bike elétrica e, ao ver os preços, decide pesquisar o que se esconde nas cifras com vários dígitos a mais do que os de seu extrato bancário, vai se deparar com a impressionante alíquota de 35% no imposto sobre produtos industrializados – IPI. Na prática, a bicicleta elétrica é equiparada a artigos de luxo como perfumes e casacos de pele ou “a produtos cujo consumo se deseja desestimular ou que são danosos à saúde da população, como bebidas alcoólicas, refrigerantes e seus extratos, cigarro ou armas de fogo”, de acordo com texto da pesquisa da Aliança Bike.
Mas há um certo alento no horizonte: a partir de 2020, o IBGE utilizará um código específico para as e-bikes em sua lista de bens e serviços industriais, a Prodlist-industria. Identificado como 3091.2005, o número servirá para organizar a produção de dados e estatísticas específicos do modal, que poderão no futuro auxiliar entidades e empresas na batalha para reduzir os impostos.
Por enquanto, a alta tributação influencia de modo negativo as decisões do grupo que é fundamental para a promoção do uso das bikes elétricas: os lojistas. A Aliança Bike mostra que para 44% dos comerciantes que se recusam a oferecer modelos elétricos, a principal razão é o preço.
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Mário Canna, da rede de bicicletarias Ciclourbano. Divulgação |
Dessa forma, mesmo com todos os avanços tecnológicos em torno das elétricas e seus novos benefícios, a entidade é taxativa: a ascensão de tal mercado não pode ser usufruída em um País com tantos bloqueios e barreiras como o Brasil.
“Nossa equipe entende que as bikes elétricas estão se estabelecendo mundialmente, que vieram para ficar. Mas no Brasil, se já tenho dificuldade para comercializar boas bikes convencionais, que já são caras, com as elétricas meu desafio é muito maior. Algumas delas estão em uma faixa de preço próxima ou maior que a de motos. E isso o consumidor não consegue compreender”, explica Mario Canna, um dos sócios da rede de bicicletarias CicloUrbano.Com esforço, Canna consegue manter uma oferta mínima de bicicletas elétricas em sua loja, com ao menos um modelo disponível para pronta entrega e outras sob encomenda, graças a um acordo com o fabricante. “Não tenho mais opções porque preciso investir para mantê-las. Vendo poucas unidades e assim é difícil sustentar um estoque.”
O meme popular na internet sobre expectativa e realidade pode ter sua versão sobre as bicicletas elétricas, tratadas como tendências do futuro, mas com um presente ainda desalentador. Algo que, obviamente, vale para os modelos hi-tech. Mas as magrelas motorizadas contam com um grande trunfo, que lojistas como Mário Canna percebem em seu dia a dia atrás do balcão: o interesse do consumidor.
“Os clientes sempre perguntam sobre bikes elétricas. Se houvesse redução de impostos ajudaria, sem dúvida. Se eu tivesse a bike elétrica certa na faixa de preço certa, eu venderia. Procura há.”
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Fonte:
https://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/sao-paulo-na-bike/bikes-inteligentes-conquistam-ciclistas-e-se-tornam-aposta-do-mercado/